sábado, 29 de outubro de 2011

O Poder do Sangue.




Em antigas civilizações, o sangue menstrual era considerado sagrado, sinal de doação da vida. Acreditava-se que, ao cair o sangue juntamente com o endométrio desprendido do útero, a terra ficava adubada, propícia para a plantação, sendo uma promessa de colheita abundante. Mitos agrários, relacionados à morte e regeneração, foram desenvolvidos e usados como uma alegoria do ser humano. E o centro de tais cultos era a mulher, vista como a portadora e doadora da vida.

Nessa cultura voltada ao feminino, o período da menstruação era considerado um tempo especial e sagrado. E não tardou que percebessem que o ciclo menstrual coincidia com o ciclo lunar. Criou-se a partir daí uma ideia mística em relação ao poder da Lua, tida como a representação da Deusa. O sangue então era a manifestação da divindade, a "força de vida" ou o "espírito fluído". Conta-se que o sangue menstrual era celebrado e sorvido. E quem dele tomava, acreditava-se, ganhava poder, força e vigor. 

Quando ouvi isso pela primeira vez, fiquei deveras curioso, pois senti que aí estava a chave para algumas das perguntas que eu fazia enquanto cristão. Por exemplo, por que tanto no terceiro céu quanto nos quintos dos infernos só tem macho? É Deus Pai, é o Filho, é o Espírito Santo, é o Anjo Gabriel, é o Belzebu... Tudo macho! Os pronomes e nomes são todos masculinos numa cosmovisão inteiramente  machista e patriarcalista. E o mais curioso é que eles não tem sexo! Se o Criador não tem sexo, então eu posso chamar ele tanto de Deus quanto de Deusa, certo? Se ele não tem genitália, então eu posso chamá-lo de Mãe ao  invés de Pai! Me disseram que não, que esse negócio de Deusa não é bíblico, e que chamar Deus de Mãe fica muito esquisito. Não me convenci.

Foi lendo sobre as antigas tradições que deparei-me com a história dos rituais de menstruação e que as mulheres eram vistas como representantes do divino. Uma ligação que não tem segredo. Pois, é a mulher que gera, que faz crescer dentro se si e quem traz ao mundo uma nova vida. A porta da vida é a mulher. E após a criança nascer, a mulher, agora na qualidade de mãe, é quem cuida e continua nutrindo. Esse fato maravilhoso de gerar e cuidar de uma vida fez nascer a crença na Grande Deusa Mãe, venerada por todos os povos em todos os tempos.

"Mãe: a palavra mais bela pronunciada pelo ser humano", escreveu o poeta Kahil Gibran. É lugar comum ouvir que nada se compara ao amor de mãe. E isso não é de agora. Platão lamentava a perda de sua mãe com essas palavras: "Tenho irmãos, pai, mas não tenho mãe. Quem não tem mãe, não tem família." Se a figura feminina é o grande símbolo de amor e ternura, como então é que foi estabelecido o culto ao deus pai?

A figura masculina advém das culturas de guerra. Em tais culturas, o amor e a ternura não eram os mais importantes. Fazia-se necessário cultivar o orgulho, a bravura e o ódio. A figura que cuida e que nutre não convinha ao ideal da guerra. Para incitar o desejo de conquista, um deus macho foi criado e a ele deram vários nomes-títulos bem apropriados: Skanda (deus hindu, "Senhor da Guerra"), El (deus cananeu, "Soberano"), Baal (deus cananeu, "Senhor da Guerra"), Elohim Tzevaot (deus hebreu, "Senhor dos Exércitos"), Ares (deus grego, "Senhor da Guerra")... Todos esses deuses personificavam o desejo por poder e sede de conquista. E, embora muitas nações cultuavam tanto a Deusa quanto o Deus, teve casos em que os líderes se esforçaram ao máximo para banir quaisquer resquício do culto à Deusa. Notavelmente, os sacerdotes do Judaísmo muito se esforçaram para que Astarote – um dos nomes da Deusa Mãe –, fosse banida, afim de que o culto fosse prestado unicamente ao Elohim Tzevaot (Juízes 2:13; 1 Samuel 31:10; 1 Reis 11:5)De fato, todo o esforço era para que a nação fosse construída sob o ideal da guerra  Deuteronômio 20:20; 21:10.

Quero abrir aqui um parêntese de suma importância. O leitor atento que conferiu em sua Bíblia as passagens referidas acima, pôde ver que Salomão tornou-se um adorador da Deusa Mãe. O interessante é que o reinado de Salomão foram dias de paz. Não havia guerra. Então que sentido havia em adorar Elohim Tzevaot? Nenhum. Embora o escriba jeovista tenha escrito, e isso bem posteriormente, que "as mulheres corromperam o coração de Salomão" (1 Reis 11:2 a 4 - note bem em quem o escriba machista colocou a culpa), o homem dito "o mais sábio da Terra" viu que havia mais favor em adorar a Deusa Mãe, que representava a paz e a celebração da vida, do que em adorar ao ranzinza deus Jeová, "o Senhor dos Exércitos". Fecha parêntese.

Se na cultura matriarcal, o rito estava vinculado ao sangue da menstruação (que significa mês da lua), como se daria a transposição para a cultura patriarcal? A única alternativa seria o sangue derramado através da imolação: o holocausto de primogênitos e, posteriormente, o sacrifício de ovelhas e bois. Se antes era o sangue menstrual, a prova concreta da dança da vida, agora o sangue derramado de bois e ovelhas seria representativo no caráter de substituição: o derramamento de sangue inocente para satisfazer as exigências de um deus de mandamentos e de culpa Levítico 4:20.

Do sangue da menstruação ao sangue do sacrifício. A sublevação patriarcal! E nessa passagem um duro golpe foi desferido no sagrado feminino: 

- Mas a mulher, quando tiver fluxo, e o seu fluxo de sangue estiver na sua carne, estará sete dias na sua separação, e qualquer que a tocar, será abominável até à tarde. (Levítico 15:19)

Estratégia política perfeita. Se antes a menstruação era exaltada como símbolo da vida, agora, segundo a tradição patriarcal, o sangue menstrual passa a ser chamado de "o fluxo imundo", numa estratégia clara de poder de controle dos corpos. Com a menstruação sendo proscrita, a Deusa passou a ser considerada a "Grande Abominação".

Mas o que seria oferecido em troca do sangue da menstruação? A única possibilidade de troca seria por meio do sacrifício, o sangue vertido através de um holocausto expiatório. E o ápice dessa transmutação foi o que veio a ser conhecido como "o sacrifício do filho de Deus", este tido nas escrituras pagãs, e, posteriormente, no pensamento judaico-cristão, como o "Sol da justiça"  Malaquias 4:2.

O Sol, símbolo da divindade masculina, foi posto em oposição à Lua, símbolo da divindade feminina. Do sangue da mulher ao sangue de um homem morto numa cruz. E nesse processo, coube à mulher o estigma da virgindade e a obrigação da obediência e do silêncio, agora representada pela figura da Virgem Maria que, significativamente, era desenhada pelos primeiros cristãos como "uma mulher vestida do Sol e tendo a Lua debaixo de seus pés"!  Apocalipse 12:1.

Hoje os cristãos celebram a morte de Jesus, tido como o sacrifício definitivo por toda a humanidade. E o sangue derramado na cruz é visto como a fonte de perdão e salvação (Mateus 26:28). Apresentado:

- Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós. (Lucas 22:20)
Se você perguntar para um padre ou para um líder protestante sobre a importância do sangue de Jesus, ambos lhe dirão que se trata de um "sacramento". Palavrinha esquisita, não? Então você ouvirá a explicação de que sacramento significa "umsinal da presença de Deus em nossas vidas". Aí estará tudo explicado e bonitinho, exceto pelo detalhe de que a palavrasacramento se origina provavelmente de sacer mens,literalmente, "menstruação sagrada".


Fonte : Blog Fantoche Livre

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