sábado, 2 de julho de 2011

Monólogo com deus - Senhor, você nos criou por amor ou por orgulho?


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Senhor, você nos criou por amor ou por orgulho?

Claro que é uma pergunta válida, afinal como você podia amar uma coisa que ainda não existia? Você amou sua ideia, foi isso? Achou que era uma boa extravasar sua criatividade empurrando a luz para um lado, as trevas para o outro e pintando alguma coisa bonita no meio? Confesso a você que tudo estava muito bonito, o mar, o horizonte, as montanhas, o sol, a lua, as estrelas, os animais. Tudo bucólico, natural, um espetáculo! Eu sempre gostei de hiper-realismo. Você bateu o olho no quadro que tinha à sua frente e “viu que tudo aquilo era bom”, e era! Mas você não tinha tanta certeza assim. Você é complexado. Pensou, “E se eu criasse alguns seres dotados de consciência e os introduzisse na obra? Se eles se tornarem gratos e me adorarem pelo que dei a eles, verei que está mesmo tudo muito bom”. E é aqui que seu orgulho se mostra, porque você os criou inocentes como crianças e os proibiu de amadurecer. Queria que o sentimento de “papai, obrigado por tudo!” durasse para sempre, e para isso o homem não podia deixar de ser um boneco de barro seco e a mulher uma costela torta. “Vocês podem fazer o que quiserem, só não vão comer o fruto da árvore do conhecimento, porque nesse momento, estarão ferrados.” 

Senhor... O que essa árvore tava fazendo lá? Você quis ilustrar algum símbolo que representasse o conhecimento do artista? Pra que deixar ela lá, tão atraente e desejável? Aliás, se você quisesse deixa-la lá, beleza, mas porque não a proteger com aquela espada de fogo que você soube usar tão bem depois na entrada do Éden? Queria um bando de macacos pulando e batendo palmas em admiração à sua obra? Então pra que criar essa árvore e ainda criar uma cobra pra ficar lá sussurrando, “olhem que árvore bonita... olhem que fruta gostosa... vocês vão ser como Deus quando a comerem...”? O que acontece quando você mostra uma coisa bonita pra uma criança e fala “não mexe”? BINGO! Resposta certa do leitor sentado de frente para o computador! Suas mãos vão coçar de maneira irresistível e ela não vai se dar por satisfeita enquanto não mexer no que não devia! E você sabe disso! É esse tipo de coisa que me emputece em você, Senhor. Você vê tudo. Desde que separou a luz das trevas você sabia o que ia acontecer. Você podia mudar o futuro? Replanejar tudo? Se não podia, você não é onipotente porra nenhuma. E se podia, e não o fez, você é 1) inconsequente, 2) irresponsável, 3) cruel... Na verdade eu poderia contar até mil elucidando seus defeitos, mas não quero perder a voz. E deve ser isso que mais te irrita nos humanos, não é? O senso crítico que recebemos quando comemos aquela fruta tentadora. Aquele conhecimento do bem e do mal sequer tocou nossos estômagos e já estávamos retocando sua obra, usando folhas como tapa-sexo. Em todo caso isso não é nossa culpa, e você sabe disso.

Você devia ter pensado em TUDO antes de começar, Sr. Onisciente! Não era pra fazer testes na tela principal. Você tentou corrigir os erros com água, fogo, sangue. Borrou tanto o papel que já não era mais possível – mesmo para quem pode tudo – esboçar um plano “limpo” pra humanidade. Então você decidiu ir cortando o mal através do gládio, sempre garantindo que sua tribo preferida de macacos bajuladores sobrevivesse. O papel ficou cheio de furos, e alguns estômagos também, uma bosta de obra, mas você preferiu chamar tudo isso de pintura abstrata, “o certo por linhas tortas”, porque começar do zero em um papel novo seria trabalho demais, não é?

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